Receita de bolo e o medo
Tinha chovido, o que deixava o ar de montanha ainda mais agradável e aconchegante, para pessoas como eu que amam o frio e a vida simples em família numa cidadezinha nas montanhas.
Minha filha Luana e eu fomos até o supermercado que ficava a uma quadra de distância de nosso chalé, para comprarmos os ingredientes para fazer um bolo. Farinha, ovos, leite, manteiga, fermento químico. Acho que é o suficiente. Na volta pra casa, vimos, beirando o alambrado de um terreno vazio, muitas lavandas em flor. Como era mesmo a lavanda? Eu não conseguia me lembrar.
Chegamos no chalé, num terreno que tinha outros três chalés, e meu filho Lucas estava no gramado da frente com as cachorras, Mônica e Magali, brincando com outro cachorro, um golden retriever meio filhotão, todo fofo e brincalhão. Era lindo demais de ver e eu sorri. Abri a porta do chalé, não sei onde meu marido estava nessa hora, e os três cachorros entraram correndo e subiram na cama de casal, que ficava no andar térreo, logo após a pequena cozinha. Um caos! Mas aquele caos bom e divertido que só quem ama animais entende. O golden era de um casal que estava em um chalé próximo ao nosso. O moço viu e queria dar uma bronca no cachorro, eu intercedi e disse que não tinha problema, que podia deixar. Eles estavam se divertindo tanto! Depois eu trocaria os lençóis. Disse também que, se ele não se importasse, poderia deixar o cachorro brincando com as nossas, e que eu iria fazer um bolo e os chamaria para tomarmos café da tarde juntos.
O chalé era pequeno e bem aconchegante mas o andar superior deixava muito a desejar. Era entulhado de móveis velhos e pesados, as telhas eram aparentes e, bem no alto, onde todos os ângulos do telhado se uniam, havia uma garrafa pet que trazia luz, não sei quem teve essa ideia, e também acumulava água e insetos. Chegou um senhor que chamamos para nos ajudar. Pedi que ele tirasse tudo do quarto e levasse para o gramado. Eu iria vender ou doar e, talvez, escolhesse um ou outro móvel para pintar e trazer de volta para casa. Eu não gostava do tom excessivamente escuro daquele quarto. Ainda não tinha decidido se iria raspar e clarear o piso ou se colocaríamos piso flutuante. Mas eu poderia pensar nisso depois, eu tinha que fazer o bolo!
Liguei o forno para aquecer. Por sorte tinha na cozinha uma vasilha de inox grande, que eu iria usar para preparar o bolo. Lavei-a pois ela ainda não tinha sido usada. Depois de seca, comecei a preparar o bolo. Amoleci a manteiga no micro-ondas, juntei o açúcar e bati bem com um fuet, até ficar aerado e esbranquiçado. Juntei o ovo e bati novamente. Eu precisava preparar o café... vou deixar para cuidar disso quando o bolo estiver assando.
Juntei a farinha e o leite e bati muito bem, até ficar uma massa lisa. Tirei o lacre do fermento, que tínhamos acabado de comprar, usei a tampinha como medida e incorporei o fermento. Hum, canela fica uma delícia, vou colocar uma colherzinha. E também raspas de limão. Acho que eu nunca experimentei a combinação, mas tenho certeza de que vai ficar bom.
Coloquei o bolo no forno e fui cuidar do café. Meu marido estava ajudando o senhor a tirar os móveis do quarto superior. Até passou pela minha cabeça fazer daquele cômodo meu reino: uma biblioteca com atelier, mas onde nossos filhos iriam dormir? Acho que eu não estava raciocinando com clareza.
O chalé tinha uma daquelas garrafas térmicas bonitas, modernas, com cabo de madeira, sabe? Eu, que não sou fã de garrafas térmicas, gostaria de ter uma dessas. Lavei a garrafa e também o coador, de plástico, daqueles que se encaixam na garrafa térmica. Coloquei água para ferver para aquecer a garrafa e o bolo começou a cheirar. O perfume inebriante de bolo caseiro com especiarias logo se misturou com o aroma do café sendo coado, acho que este é um dos grandes prazeres da vida.
Arrumei rápido a mesa que, aliás, seria nosso foco depois de cuidarmos do quarto de cima. Precisávamos de cadeiras melhores, mais confortáveis. Coloquei o bolo, o café e muitas xícaras na mesa e chamamos todos para se juntar a nossa família: o casal do chalé ao lado, o senhor que estava cuidando dos móveis e também a mãe do moço que morava no último chalé e estava por perto.
Terminou.
Não sei quanto tempo demorou, talvez 20 ou 30 minutos. Eu tinha conseguido.
O aparelho deslizou lentamente, a enfermeira me ajudou a me levantar, eu perguntei seu nome, a agradeci e pedi desculpas pelo trabalho que eu tinha dado. Ela respondeu que não tinha problema, que estava lá para isso.
Eu tinha feito ressonância magnética da coluna cervical e lombar. No último ano tive uma experiência ruim num conceituado hospital de Brasília e, talvez a partir daí, tinha desenvolvido fobia deste exame.
Fiz no ano passado, um deles nesta mesma clínica em que fiz os exames ontem, e me lembro deste ter sido muito rápido e tranquilo e eu não ter sentido medo.
Mas as coisas não foram assim há duas semanas, quando fui fazer os exames num hospital perto de casa. O exame estava marcado para bem cedinho e tive uma série de experiências ruins no atendimento e na estrutura do hospital, que não quero me dar ao trabalho de relatar. Mas eu estava bem tranquila, apesar de tudo. Só preciso fazer este exame e volto caminhando para casa, pensei. Infelizmente não foi o que aconteceu. Na sala onde eu tive que tirar a roupa e colocar a roupa hospitalar, as luzes se apagavam e acendiam. Eu brinquei com o técnico ao sair, dizendo que no questionário onde perguntava se eu tinha claustrofobia, não perguntavam se eu tinha também medo de escuro. Ele não riu. Ao entrar na sala onde tinha o aparelho, a maca ou sei lá como se chama aquele lugar onde se deita, era no baixo. Tinha um cobertor displicentemente dobrado sobre ela. Eu disse ao técnico que eu não tinha claustrofobia mas perguntei como poderia chamá-lo caso fosse preciso. Ele me deu uma espécie de bomba para eu apertar. Soa estranho o termo bomba, é parecido com aqueles aparelhos de medir pressão antigos, que o médico tinha que bombear ar... Enfim. Assim que entrei no aparelho, com os olhos fechados, tentei pensar em coisas bonitas como sempre faço. Respirava e pensava em montanha, me veio a mente os reels do Instagram de vilas medievais e eu abri os olhos e pensei só uma coisa: caixão. Apertei o botão, ou melhor, a bomba, e já fui saindo do aparelho. O técnico desligou tudo, me pediu calma e deslizou a maca. Eu pedi desculpas e disse que não conseguiria fazer o exame.
Desde antes da pandemia eu comecei a sentir uma sensação estranha de falta de ar, não sabia se era psicológico ou não. Procurei um otorrino que pediu vários exames e foi constatado que eu tinha apenas um leve desvio do septo. Em situações como esta do exame de ressonância magnética, minha mente me leva a acreditar que eu não consigo respirar.
Mas eu consegui. Com a ajuda da enfermeira, que foi extremamente cuidadosa e gentil, eu fiz o exame. Eu tinha dito a ela que não tinha conseguido fazer o exame dias antes. Assim que eu estava pronta para começar, fui tomada pelo pânico, retirei a proteção que ela tinha colocado ao redor da minha cabeça e comecei a chorar, dizendo que não iria conseguir. Ela só falou calmamente: tenta. Fechei os olhos e tentei, respirando profundamente enquanto ela dizia: tá tudo bem, eu estou aqui perto. Tive pânico sim, abri os olhos, olhei para o fundo do aparelho para ver se tinha saída do outro lado. Lágrimas escorriam enquanto eu tentava me acalmar.
No fim deu tudo certo. Quando estávamos no caminho para a clínica, meu marido me perguntou: O que você diria para nossos filhos se eles fossem fazer este exame? Eu prontamente respondi que era uma exame tranquilo, que não doía, era só fechar os olhos e ficar pensando em coisas bonitas.
Sandra
Atelier Luka Luluka
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