Os cacos

 Sou cria dos anos 80 e tem uma música do Guilherme Arantes que se chama Pedacinhos e diz assim:

"Pra que ficar juntando os pedacinhos

do amor que se acabou

Nada vai colar

Nada vai trazer de voltaa beleza cristalina do começo..."

De fato me lembrei desta música só agora que me sentei para escrever, porque o assunto não é sobre cacos emocionais e sim reais.

Nossos pratos de sobremesa são todos diferentes entre si, eu gosto assim. Traz alegria para a mesa. Sempre que vejo pratos bonitos, avalio o preço e se estamos precisando de mais e então compro para se juntar à nossa coleção. Há alguns meses, um deles se quebrou. Não me lembro quem foi o “culpado” e isso pouco importa. Cheguei numa fase da vida em que essas coisas não têm importância. São só coisas. Este prato era muito bonito, um dos meus favoritos. Tinha pintura de flores de lavanda.

Não sei se vocês acompanharam por aqui o surto que foi saga dos cacos de porcelana. Aconteceu há dois anos, eu tinha feito duas cirurgias no olho esquerdo, estava de licença, não podia fazer esforço e estava impossibilitada de ler. Nem legenda em fonte grande na TV eu conseguia. Então entrei numa jornada de tentar reproduzir uma ideia que tinha visto: fazer pingentes com cacos de porcelana. Se tiver curiosidade, pesquisa por “cacos” aqui no blog. Foram muitos os experimentos e adianto que ficaram todos horríveis. Mas como a vida é mágica e surpreendente, eu tinha comprado um lote de discos de vinil para fazer trabalhos em mixed media e alguns deles eram muito antigos e de outro material, goma laca, eu descobri na época. Ao higienizar estes discos acabei derrubando um deles e ele se partiu em muitos pedacinhos e foi neles que encontrei a realização de fazer joias com cacos. Você pode ver as peças no post Diário dos cacos de porcelana: pingentes de discos de goma laca.

Quando aquele pratinho de flores de lavanda se quebrou, eu vi beleza em seus cacos, pequenos fragmentos de pinturas lilás e verde. Pela minha experiência falha, eu sabia que não valia a pena investir neles. Mas eu tinha trazido da casa de minha mãe algumas folhas de suculentas, numa nova tentativa de cultivar plantas em casa. Plantei-as todas em um vaso de barro e coloquei na janela da lavanderia, que é devidamente protegida por tela. Alguns minutos depois, Tofu, o gato laranja, já tinha subido na janela e estava xeretando no vaso. Tive então a ideia de usar os cacos para fazer uma cerquinha, enfiando os cacos na terra para proteger as plantinhas. Lógico que não adiantou nada e a janela da lavanderia, desde então, tem ficado aberta apenas uma fresta de cada lado. E os cacos de porcelana ficaram por lá, sem utilidade, nem muita beleza.

A lavanderia é o lugar mais bagunçado da casa pois tem muita coisa, além de coisas de lavanderia: caixas de ração, ferramentas e uma escrivaninha com prateleiras até o teto, onde deveria ser meu atelier mas que não tenho frequentado nos últimos meses.

Hoje estava colocando algumas roupas para lavar e olhei para aquele vaso, com aqueles objetos pontiagudos que são o oposto da harmonia que eu busco nas coisas e, num flash, me lembrei de uma cena de filme. Vocês assistiram Colcha de Retalhos? É um filme dos anos 90 com a Winona Ryder como atriz principal e um elenco maravilhoso de atrizes veteranas. Na época em que ele foi lançado eu tinha uma locadora e o assisti assim que a fita VHS chegou (faz tempo isso). Tem uma cena com a qual me identifiquei e chorei muito mas sobre a qual eu falo em outro momento. A cena da qual me lembrei olhando aqueles inúteis cacos de vidro foi uma em que Anne Bancroft* pega um martelo e começa a arrancar de uma parede todos os cacos de louças que ela havia colocado há anos. A parede, horrorosa e impactante, tem um simbolismo. Ela havia grudado lá as peças que ela havia quebrado num ataque de fúria, quando descobriu que seu marido a havia traído com sua irmã, interpretada por Ellen Burstyn*. Os cacos têm todos o simbolismo do ressentimento que ela sentia e a cena dela destruindo a parede, tão emocionante, significava que ela,  agora na velhice, finalmente tinha perdoado a irmã.

* Espero não ter me enganado quanto ao papel das duas atrizes.

A cena só me veio à mente e eu soube que estava na hora de me desapegar daqueles objetos quebrados. Juntei todos os cacos num pratinho, fotografei-os - com participação do Tofu - e joguei no lixo.


É sobre cacos reais mas também sobre o exercício diário que faço de focar no que é importante e de não me apegar a coisas.

Estou fazendo também um exercício de me organizar melhor com as publicações do blog, agora que voltei a escrever. Os posts saem às 11 horas de segunda-feira. 

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